sexta-feira, 2 de maio de 2008

Entre serras: cantos, danças e auto flagelação

O artigo que transcrevemos é do Folclorista Severino Viecente e foi publicado no vespertino
"O Jornal de Hoje", de 10.04.2007.

Aproveitei o feriado da Semana Santa atendendo ao convite dos prefeitos de Luis Gomes e Major Sales. Então pus o pé na estrada. Não só para observar o belo cenário, com nuvens carregadas beijando as serras de João do Vale, um dos pontos mais altos do Estado com mais de 700 metros de altitude; o Pico do Ererê, em Triunfo Potiguar, ligado ao pioneirismo do patriarca Felipe Néri; a Serra do Lima, com o santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis, em Patu, terra dos Carirí e Janduí, que atrai milhares de romeiros e turistas de todas as partes do Brasil; a Casa de Pedra, refúgio do famoso cangaceiro Jesuíno Brilhante; a inconfundível Serra de Martins, antiga Serra da Conceição, do Capitão-Mor da Aldeia de São João do Apodi, Aleixo Teixeira e Francisco Martins Roriz; Portalegre, do português Miguel Carlos Caldeira Castelo Branco, onde mulheres negras dançam a tradicional dança de São Gonçalo, um culto ao santo de Amarante; Antônio Martins. A antiga Boa Esperança, de Justino Ferreira de Souza, hospedou, numa noite de chuva, relâmpagos e trovoadas, os insignes pesquisadores Mário de Andrade e Câmara Cascudo que cortavam o sertão nos idos de 1929, em pesquisa, e projetou o Rio Grande do Norte no sul do país. Uma cidade do tipo bem arrumada, limpa e bem cuidada. O prefeito não conheço, mas fica aqui os parabéns. A cidade merece um selo de qualidade, assim como Luiz Gomes e Major Sales. Lá a cultura popular é respeitada. Alexandria, no pé da serra da Barriguda, do preto aventureiro José da Costa, que lhe deu denominação até o ano de 1913, quando passou a chamar-se Alexandria, em homenagem a Alexandrina Barreto Ferreira Chaves, uma filha da terra e esposa de Joaquim Ferreira Chaves. É também a terra do amigo George Veras, historiador da cidade, cujas pesquisas resultaram num competente e belo trabalho, "Alexandria Retratos de uma História", fruto de enormes empreendimentos. Parabéns George.

Enfim, com os companheiros de viagem e equipe de reportagem do RN Turismo, somos recebidos fidalgamente pelo Dr. Pio X Fernandes e sua esposa Maria Elci, para um almoço ao estilo bem sertanejo, em plena Serra de Luis Gomes, num mirante que mais parece um Olímpio reservado à morada de deuses. Mas os deuses que lá estavam e nos aguardavam, eram os da cultura popular do Alto Oeste Potiguar. Manifestações centenárias guardadas por aquele povo, transmitidas de gerações a gerações: Maneiro-Pau, Rei do Congo, Xaxado, Dança dos Caboclos e o Canto dos Penitentes.
O primeiro é uma variação do Coco de Roda, teria surgido da expressão maneire o pau, desça o pau devagar, simulando uma luta dois a dois, tal qual acontecia quando ainda não existia arma de fogo e as brigas eram mesmo no cacete brabo. O ritmo da dança é dado por esses pedaços de pau, que chamam de bastões. Edson Inácio de Almeida (Som), é o organizador do grupo e o tirador dos cocos.

O Rei do Congo é um misto de boi e congo. Com a presença de Rei e Rainha e suas indumentárias tradicionais. Jaraguá, Burrinha, Mateus, Birico, Catirina e mais trinta marujos que dançam e cantam músicas dos dois tradicionais autos. Francisco de Assis (mestre Bebé) diz: "sou de uma família de reis congueiros, isto vem de muito tempo atrás aqui em Luiz Gomes".

Na Vila São Bernardo, no alto do Tabor, fui ao encontro de José Bernardo de Araújo (pai velho), o"Decurião" do canto dos Penitentes. Havia falecido há 5 meses beirando os 100 anos. Mas, foi possível entrevistar seus continuadores encenando essa peculiar prática do catolicismo tradicional. Grupos secretos de sertanejos que nas caladas da noite visitam cruzeiros em lugares esquisitos, entoando cantos altíssimos, exóticos e monótonos. Em Luiz Gomes num dos pontos mais altos da serra existem dois cruzeiros, que não são os de mais de 100 anos atrás. São réplicas que servem de referências para a continuidade dessa prática da auto-flagelação. Açoitam-se com três lâminas de ferro bem amolados medindo 5 por 4 centímetros, amarrados numa tira de couro, até escorrer sangue das costas. Os cantos são penosos e tristes, mas para eles é a forma de ver seus pedidos atendidos, evocando sempre Jesus, São José e Maria. No Cruzeiro está escrito assim: "Nas terras do povo de Deus/ viva Jesus para sempre/ São José e Maria".

Autor: Severino Vicente
E-mail: severino_vicente@yahoo.com.b

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